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Quem sabe, dentaduras, conto de Salma Soria

por Salma Soria
Foto de Luísa Machado para ilustrar o conto "Quem sabe, dentaduras", de Salma Soria.

Salma Soria é escritora. Publicou em 2021 os livros de contos Vestindo a roupa
ouvindo a máquina
e Muitas roupas aqui (Penalux).


Friorenta desde sempre, Marília esqueceu o casaco em cima da mesa de trabalho. Com pressa, teve de esperar a colega de escritório descer o 15º andar do prédio para entregar o agasalho em mãos. Olha em volta impaciente.

Uma lasca de cebola está caída rente aos pés de Marília. Observa a fina fatia bem cortada, dessas que profissionais de gastronomia deslizam com faca amolada em poucos segundos sem nem olhar para a cebola, sem nem arder os olhos.

A curvada fatia de cebola displicente, lembra a dentadura da avó. Pensou se ia usar dentadura um dia. Porque seus pais, seus avós e seus tios usam dentaduras. Não sabe explicar se era porque tinham algo no sangue que favorecia, se alimentavam mal ou era moda da época. Perguntou-se: seria possível congelar a forma do sorriso com a dentadura? Seria possível conviver com algo do corpo sem deteriorar?

Sonha com frequência que está perdendo os dentes. Tem medo de ser anúncio de futuro sem os próprios ossos de triturar comida na boca.

Pensou em começar a juntar dinheiro para caso, um dia, precisasse usar dentadura, não teria grandes dificuldades em conseguir. E não seria qualquer coisa. Seria um modelo que liberaria aroma perfumado todos os dias durante cinco anos, evitando o constrangimento do mau hálito, com pequenas funções massageadoras entre as gengivas, em momentos de grande ansiedade ou nervosismo, funcionando em três níveis: massagem soft, regular e extrema. Mas se estivesse atarantada e a gengiva começasse a pulular fazendo grande destacamento da cara, seria algo a se pensar, talvez isso de massageador não fosse querer contratar, haveria de ter uma capinha colorida de guardar os dentes, com senha para desbloquear a caixa e tudo, porque não basta a dentadura ter um molde exclusivo da boca, a embalagem também tem que ter, porque vai que roubam sabendo das vantagens todas, melhor fazer um agasalho para a capa. Um acessório do acessório deve dar mais confiança ao guardar.

E se não precisasse nunca usar uma dentadura, usaria esse dinheiro para fazer uma viagem com as amigas, quem sabe um cruzeiro em belo navio de vários andares, mas porque pensar na destruição do próprio dente agora, ela não soube dizer, melhor escovar os dentes e passar fio dental sempre após as refeições, regras herméticas, regras esquecidas, pode ser que isso a salve de dentes móveis, já tem computador, telefone, antena, comida móvel, pra quê dente que guarda em bolso também, nem as unhas rói mais, os dedos esqueceram qual é o gosto da língua e do dente que carrega, isso ela acha, melhor só juntar algum dinheiro, pode ser que precise mesmo é trocar o guarda-roupa.

A colega entregou o agasalho esquecido. Marília perguntou à moça se ela achava que um dia fosse precisar de dentadura. A colega não soube dizer porque aquilo não era algo que lhe preocupava, mas contou que a coisa mais estranha que já viu sobre dentadura, foi uma espécie de despertador em que giram uma corda e a dentadura sai pulando sozinha. Marília perguntou onde que compra. A amiga disse, na internet.

Durante a viagem de ônibus, Marília pensava em começar a desenvolver um protético cheio das vantagens que imaginava. Seria um sucesso, ela acha.

Na loja virtual da internet, comprou a quantidade de dez despertadores dentaduras e esperou chegar. E na papelaria virtual comprou um caderninho com folha sem pauta para esboçar diversos modelos imaginados. Quer apresentar a invenção na feira criações & patentes. Quem sabe faz diferença na vida de alguém, ela acha.


Foto de Luísa Machado.

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